Com o perdão das controvérsias que este texto pode inadvertidamente suscitar (não foi essa a intenção deste que vos escreve) e do usufruto do nome do quarto álbum de estúdio de Gabriel, o Pensador, o título deste artigo não poderia mesmo ter sido outro… Considerem-se avisados.
É difícil transmigrar a preferência nacional para um mero estudo antropológico, mas os glúteos humanos são uma maravilha da evolução.
Já observaram o traseiro dos macacos? Não é nada mais do que um par de calosidades isquiádicas. É feio, vermelho e disforme. Existe, porém, uma utilidade. Quando estão ovulando, as fêmeas ficam com aquelas calosidades inchadas e mais coloridas. Para o macho, basta olhar para a bunda da macaca e constatar que ela está “a fim”. Sabem que naquele símio derrière existe susceptibilidade e possibilidades. Sim, o hábito de olhar para a bunda da fêmea, aparentemente não é exclusiva da espécie humana.
De acordo com o zoólogo e etólogo Desmond Morris, autor do livro A Mulher Nua, a posição recém-ereta do homo sapiens aparentemente gerou a expansão inicialmente exagerada das suas nádegas nos primórdios (pelo menos até que se encontrasse um meio-termo). As pinturas rupestres parecem atestar esta teoria. Os artefatos encontrados do período também — vide a Vênus de Willendorf. Morris ilustra um exemplo desta expansão calipígia ao mencionar um grupo étnico que habita os desertos do sudoeste da África — os san: Koisan ou Koikoi. Trata-se de uma tribo tão antiga quanto a própria humanidade. De acordo com ele, os Koisan representam o berço da civilização paleolítica. Acredita-se que, num certo período da Idade da Pedra, eles eram um dos povos dominantes da nossa espécie. Pois bem: as mulheres san são dotadas de nádegas gigantescas (uma condição chamada “esteatopigia”). Teriam os primeiros exemplares eretos dos primatas desenvolvido nádegas imensas para sustentar a então neófita postura? Bem possível, né?
Um parêntese: além das nádegas, outra característica bem peculiar e específica da mulherada desta etnia é o volume dos pequenos lábios vaginais — que, de pequenos, só têm o nome. De fato, podem chegar ao tamanho das asas de borboletas.
Os imigrantes europeus “batizaram” este povo com a denominação “hotentote”, que era como eles imitavam os sons da língua Koisan (Coissã, dependendo da grafia). O termo hoje é considerado ofensivo. A representante mais famosa (e trágica) deste povo foi Sarah “Saartjie” Baartman (c. 1790 – 1815). Dotada de uma bunda descomunal — até mesmo dentre os seus — esta pobre coitada foi exibida como uma atração de circo durante vários anos no século 19 com o nome “artístico” de Vênus de Hotentote.
Sua curta e trágica vida foi retratada no espetacular filme francês Vênus Negra (Venus Noire, 2010). Saartjie foi interpretada pela estreante Yahima Torres, uma imigrante cubana que o diretor viu quando atravessava uma rua em Paris. Torres, além de ser dona de um traseiro enorme (mas um terço do tamanho da Saartjie real), revelou-se também ser uma atriz de primeira categoria. Sua tocante e silenciosa atuação traz à tona a angústia da personagem em tentar preservar um resquício de dignidade. Merecia uma indicação ao Oscar (foi, pelo menos, nominada a um César — o Oscar francês).
No começo do filme, deparamos com uma estátua de gesso de Saartjie e parte de sua vagina num frasco em formol, apresentadas numa conferência da Academia Real de Medicina em Paris, em 1817. O formato de sua cabeça é descrita candidamente pelo palestrante como “muito parecida com a de um orangotango”.
Nascida na África do Sul, Saartjie foi ama-de-leite dos filhos de Hendrik Caezar. Ele convenceu-a a se apresentar pela Europa e ganhar fama e fortuna. “Seus shows, no entanto, eram pura exploração de seu visual diferente — na verdade, ela vira atração de circo mesmo”. Saartjie era retratada como um animal selvagem. Tímida, o espetáculo a constrangia profundamente. Bebia muito para lidar com a vergonha.
Caezar acabou enchendo o saco e a “vendeu” para um sujeitinho asqueroso chamado Réaux. Foi aí que Saartjie entrou num espiral de degradação. A cada cena (curiosamente sem nenhuma trilha sonora), a situação ficava cada vez pior. No final, ela teve que se prostituir nas ruas de Paris e acabou morrendo sozinha num quartinho imundo. Como se isto não bastasse, Réaux vendeu (isso mesmo, vendeu) seu corpo para a tal Academia Real de Medicina. Eles tiraram um molde de gesso do cadáver, extraíram sua vagina e seu cérebro, desossaram-na, e exibiram seus restos até 1974.
O filme é um estudo sobre “a dualidade entre escravatura e liberdade, entre arte e degradação humana, entre o estudo científico e a caça à glória, focando temas como o colonialismo, o racismo, a ignorância, e o mundo do espectáculo e das ciências. Mas mais do que estas temáticas particulares, a obra foca-se na derradeira tentação do homem, que é a sua atitude voyeurista e de objectificação, como se tudo fosse justificável para servir de espectáculo ou em nome da investigação”. Mesmo morta, “ela não deixa de ser um objecto (sic) (…): sendo medida, moldada e dissecada”. É uma obra “sobre a coisificação e a perda de humanismo dos indivíduos, (o filme torna-se) intemporal, ainda que tão sabiamente datado” (www.c7nema.net).
Em tempo: os restos mortais de Saartjie foram enterrados na África do Sul em 1994, a pedido do então presidente Nelson Mandela — 200 anos após seu nascimento.
Mas voltando a questão glútea, o estoque extra de gordura nas nádegas pode ser considerado fonte de “alimento para as emergências — quase como a corcova do camelo. Sinal este, que é acentuado pela capacidade de rotação da pelve e a ondulação dos quadris ao caminhar. A mulher tem as costas mais arqueadas do que o homem. Quando ela caminha, a estrutura óssea das pernas e dos quadris provoca uma ondulação maior da região glútea. Em curtas palavras, ela rebola ao andar. Maior gordura, maior protrusão, maior ondulação. Forte apelo erótico. Isso ocorre devido à conformação do seu corpo. (…) não surpreende que quase todos os movimentos dos quadris tenham uma marca feminina. Maneiras de andar que envolvem um evidente balanço dos quadris são tão femininas que são utilizadas como caricaturas em performances cômicas” (MORRIS).
Nosso etólogo defende algumas teorias até meio controversas nestes tempos de politicamente correto. A fêmea humana, contrário às dos primatas, não possui um “cio” propriamente dito. Ela teria, sim, o potencial e poder de estar sempre receptiva ao sexo — quando decide e quer. O ondular das nádegas atrai o macho. E esta expansão da sensualidade, queira ou não, foi um diferencial para a sobrevivência da espécie. O ato sexual, além de procriar, transformou-se numa troca de carinho e afeto — o que ajudou a fortalecer os laços emocionais entre os casais e manteve a unidade familiar. Isto foi primordial para nossa evolução. “Para os humanos, a cópula é literalmente fazer amor, e é importante que o corpo da mulher seja capaz de transmitir sinais eróticos o tempo todo”, afirma Morris.
Bem, seja lá como for, Desmond Morris estipula que o aumento do tamanho das nádegas, começou, de alguma forma, a atrapalhar o ato sexual — outrora feito exclusivamente por trás. A cópula frontal, além de aumentar o vínculo entre o homem e a mulher, fez com que os seios se desenvolvessem e assumissem uma função que ultrapassasse o aleitamento. E de fato, é publico e notório que o ser humano é o único primata cuja fêmea tem seios arredondados. Morris teoriza que “os seios cresceram para imitar os grandes hemisférios posteriores”. Este par de “falsas nádegas” que a fêmea humana carrega consigo “lhe permite continuar transmitindo o primitivo sinal sexual sem dar as costas ao interlocutor”. Será?
Portanto, partindo destes pressupostos, o livro A Mulher Nua (veja artigo 150, artigo132, artigo 43, artigo 26 e artigo 13) atesta que andar ereto ajudou a desenvolver as nádegas e os seios como os conhecemos. Sim, as nádegas foram se expandindo (e muito) a medida que fomos nos tornando eretos. A musculatura glútea teve que se desenvolver para sustentar tal posição. Este par de hemisférios, tão diferente daquelas calosidades isquiádicas do macaco, era considerado pelos gregos como sinal da suprema condição humana. Esta adoração refletiu-se no decorrer dos séculos. Morris ainda divaga que que as curvas gêmeas das nádegas, quando nos dobramos pra frente, lembram-nos da forma estilizada do coração — o símbolo universal do amor. E que ainda por cima, revelam os órgãos genitais. “Nos fortes e nas igrejas, esculturas de mulheres exibiam suas nádegas arredondadas para afastar os maus espíritos, já que as nádegas estavam sempre voltadas para fora da porta principal”. Ufa!
No fringir dos ovos, obviamente a importância dos glúteos vai além da estética. Desenvolvidas ou não, é importante fortalecê-las, já que “a região é fundamental para a estabilização pélvica e da coluna vertebral, exercendo uma função na marcha, mantendo a posição ereta e reduzindo as forças que comprimem a coluna”. Teorias e controvérsias à parte, o ato de andar ereto pode até ter ajudado a desenvolver as nádegas tais quais as conhecemos. Mas as nádegas (mais especificamente, os glúteos) definitivamente têm o seu papel para manter o homo sapiens ereto. Uma coisa não começa sem a outra. Ainda assim, uma coluna bem ajustada e uma rotina de exercícios de fortalecimento “ajuda a reverter lesões e a manter a postura correta”. (Veja artigo 17)
E isso, mais do que a questão evolutiva, é o que mais importa a um Quiropraxista.