Alguns anos atrás, uma entidade de direita de um país escandinavo (Suécia, talvez) postou em outdoors pelo país duas fotos lado a lado. De um, mulheres nuas de mãos dadas; e de outro, recatadas senhoras vestidas dos pés à cabeça tomando banho de mar. Com uma frase de efeito do tipo “não deixe que nosso país chegue a este ponto”, a comparação era inevitável e dava-se a entender que o segundo grupo era muçulmano.
Instaurou-se então na época uma tremenda controvérsia. Mas o que chamou a atenção deste que vos escreve foi uma coisa completamente fora de contexto. Prestem bem atenção: uma entidade de DIREITA postou fotos de mulheres NUAS e comparou-as POSITIVAMENTE com a alternativa. Pois é. Somente num país escandinavo a direita é liberal o suficiente para encarar a nudez como algo livre, natural e desejado.
Temos uma noção naturalmente preconcebida (visto a história do nosso país) de enxergar a direita como conservadora e a esquerda como progressista. Não nos damos conta que batizamos assim estas inclinações devido às posições das cadeiras da Assembléia Francesa na época da Revolução (1789 – 1799).
Mais precisamente no dia 11 de setembro de 1789, “os membros da Assembleia Constituinte, reunidos para deliberar sobre o poder de veto de Luís XVI, sentaram-se espontaneamente de ambos os lados do presidente: à direita, os monarquistas fiéis ao rei e dispostos a lhe dar o direito de veto absoluto; à esquerda, os adversários que queriam limitar o veto do rei.”
Então. O pessoal que se sentava do lado direito tendia a ser mais reacionário, avesso as mudanças e convervador. Pronto. O nome pegou e os escandinavos andaram por aí às voltas com a dita direita postando fotos de modelos peladas. E repelindo o recato muçulmano. Um aparente paradoxo, portanto. Um curioso exemplo do que consideramos um pré-conceito da direita misturada com o preconceito contra uma religião.
Mas fora alguns soluços aqui e acolá, quase tudo na vida está repleto dessas noções preconcebidas. No setor automobilístico, há “uma famosa regra que, se o preço do etanol for 70% do preço da gasolina, seria mais vantajoso abastecer com ele“. Isso porque o álcool queima mais rápido que gasolina. “Mas, pela evolução técnica dos motores e do próprio etanol, hoje, essa proporção pode chegar a até 75% e esse valor é impactado por outras características do funcionamento dos motores”. Portanto, a equação é ligeiramente mais complexa e esse percentual depende de carro a carro.
A medicina está repleta de noções preconcebidas. E aí entra a goiana Ludhmila Abrahão Hajjar, conceituada cardiologista Diretora de Ciência, Inovação e Tecnologia da Sociedade Brasileira de Cardiologia e da Cardio-oncologia do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP — além de Coordenadora da Cardiologia do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo e também do Programa de Pós-Graduação em Cardiologia da FMUSP.
A doutora Hajjar notou uma coisa curiosa. Em qualquer cirurgia mais demorada (acima de três horas de duração), necessitava-se quase sempre de uma transfusão de sangue. O cirurgião pede uma transfusão se a quantidade de hemoglobina (proteína responsável pelo transporte de oxigênio para os tecidos) cair a níveis inferiores a 10 gramas por decilitro de sangue. Isto era o procedimento padrão.
Nossa cardiologista perguntava-se o porquê de tal valor. O 10g/dl veio de onde? Baseou sua tese de doutorado nesta indagação e fez uma descoberta estarrecedora. O “número mágico” de 10g/dl era fruto da observação clínica de um famoso médico, John Lundy, criador do primeiro banco de sangue do mundo, na Clínica Mayo. Acabou sendo acatado pelos médicos da época e virou assim uma espécie de tradição — mas sem embasamento científico.
Doutora Hajjar arregaçou as mangas e realizou um estudo com 512 pacientes no InCor. “Metade do grupo recebeu sangue quando o nível de hemoglobina caiu a 10g/dl. A outra metade só passou pela transfusão quando o índice ficou abaixo de 7g/dl”. O resultado? “Os doentes que receberam menos sangue se recuperaram tão bem quanto os que receberam mais sangue”. E mais, quando comparada à pacientes que não receberam sangue, constatou-se que “a transfusão aumenta em 20% a taxa de mortalidade e de complicações clínicas a cada bolsa de sangue recebida”. (Revista ÉPOCA, 10/01/2011)
“Esse estudo é uma adição notável às evidências anteriores”, escreveu Lawrence Tim Goodnough, da Universidade Stanford. “Eles sugerem que reduzir ou evitar as transfusões em pacientes cardíacos melhora o resultado do tratamento”. “Não podemos continuar fazendo medicina em 2011 baseados num relato de 1942”, afirmou na época Dra. Hajjar.
No InCor, seu trabalho já mudou o comportamento dos médicos. “Nossa conduta agora é evitar a transfusão”, diz Noedir Stolf, chefe do departamento de cirurgia cardíaca. Transfusões desnecessárias utilizam o sangue de quem realmente precisa. E sofremos com a crônica falta de doadores. O custo da cirurgia sobe, com cada bolsa de sangue de 350 mililitros custando entre 300 a 800 reais (a maioria dos pacientes recebe duas ou três). Mas o risco principal é usar sangue contaminado por bactérias ou vírus. Mesmo remota, esta possibilidade existe. A conduta mais adequada seria monitorar o estado do paciente sem se ater a um número x.
E já que estamos revendo números, ressalte-se, entre minha época de estudante e meus primeiros anos de formado, o que é considerado nível normal de glicose no sangue desceu de 110 mg/dL para 99 mg/dL. Sim, até nisso paradigmas mudam.
Alguns anos atrás, observou-se que, depois de cirurgia bariátrica feita com uma determinada técnica, uma quantidade considerável de pacientes diabéticos teve uma redução drástica nos níveis de glicose no sangue. Também chamada de Bypass gástrico em Y de Roux, “Redução do Estômago”, ou Cirurgia de Fobi-Capella, a técnica consistia em fazer “um grampeamento e secção que reduz o tamanho do estômago a cerca de 10% do que era, ficando com capacidade de 15 a 20 ml. O pequeno novo estômago fica separado do estômago grande, recebendo somente ele (o pequeno) a alimentação. Após, é realizado um desvio de trânsito alimentar (bypass ou derivação em Y) diretamente a uma parte distal do intestino delgado”.
Na medida que os anos iam se passando, o procedimento ficou cada vez mais popular. A tal cirurgia passou a ser vista pelos médicos de campo como uma forma definitiva de debelar a diabetes. Os Conselhos de Medicina estrilaram, mas, com o decorrer do tempo, pesquisas e resultados, acabaram por regulamentar a prática cirúrgica em 2017. E hoje em dia já tem até nome novo: cirurgia metabólica. (ver artigo 74)
No metiê da Quiropraxia, é eterna a discussão sobre forma versus função. Alguns colegas procuram normalizar as curvas fisiológicas da coluna. O sucesso do tratamento depende das lordoses e cifoses atingirem o grau considerado adequado. Mas, subvertendo como se diz em inglês, what´s good for the goose is not always good for the gander (o que é bom para o ganso nem sempre é bom para a gansa). Para mim, isto é meio como um Santo Graal da Quiropraxia: parece uma boa coisa, mas muito difícil de obter e nem sempre com resultados sintomatológicos desejados. E me remete a um caso contado por um professor de Técnica Pélvica sobre um Quiropraxista com retificação cervical que buscava uma lordose de 31°-40°. Seu objetivo até que foi conquistado, mas as dores do pescoço apareceram também logo depois. Às vezes, função é melhor que forma e viver bem com a coluna que tem pode ser bem mais proativo — mesmo com algumas retificações e curvas laterais. Bem, seja lá como for, different strokes for different folks (cada qual com seu cada qual). A reação ao tratamento é altamente individualizada.
De qualquer modo, essas mudanças ocorreram porque alguém questionou os status quo — exatamente como um jovem médico austríaco fez há mais de 150 anos. Ignaz Semmelweis “demonstrou que o fato de os médicos lavarem as mãos no hospital evitava a morte de parturientes”, e, no desespero pelo ceticismo e falta de apoio dos colegas, botou a boca no trombone e recomendou publicamente que a mulherada não parissem nos hospitais. Seu temperamento “orgulhoso e agressivo” não deve ter lhe ajudado muito no aceitamento da sua causa. Além do pré-conceito havia também um certo preconceito. Mas o tempo provou que Semmelweiss estava certo.
Exatamente como ocorreu com um certo cirurgião bariátrico ou com uma certa cardiologista de então 32 anos.