Quando a Segunda Guerra acabou, o mapa mundial foi redefinido pelos Aliados. Alguns países foram anexados e outros divididos, como a Alemanha e a Coréia (depois de concluída a Guerra do Pacífico). As duas Coréias anos depois entraram em guerra.
A Guerra da Coréia (1950 – 1953) foi um conflito entre a Coréia do Sul (com o suporte das Nações Unidas) e a Coréia do Norte (subsidiada pela China e com o apoio logístico de armamentos militares da antiga União Soviética). Os Estados Unidos, naturalmente, tiveram um papel-chave nesta briga. Mandaram muita gente para lá.
Peter Curran foi uma destas pessoas. O militar trabalhava como carpinteiro para o exército americano na Guerra da Coréia. Um dia, ao descer de uma colina de carro na chuva, um caminhão o abalroou. Deve ter sofrido algum tipo de fratura vertebral de natureza instável, porque foi submetido a uma artrodese (uma fusão cirúrgica de, neste caso, duas vértebras). A operação removeu o disco intervertebral e “grudou” uma vértebra a outra, “soldando-a” com um pedaço de osso do próprio paciente (na década de 50 o procedimento era bem mais rudimentar do que hoje, ressalte-se). Com isto, Curran ficou condenado a sentir dores de coluna para o resto de sua vida e ter que lançar mão de um colete ortopédico para alcançar algum alívio.
Peter Curran virou então um militar reformado por incapacidade. Seu soldo, em torno de 600 dólares por ocasião de sua morte, mal dava para pagar suas despesas. Vivia de favor na casa de uma mulher com dois filhos e consertava isto e aquilo para sentir-se útil. Os meninos o adoravam. Criava bichos por toda a parte: num tanque na cozinha, uma pequena tartaruga; na sala de estar, um gordo hamster numa gaiola, peixes num aquário e um filhote de crocodilo noutro menor; no seu quarto, um iguana num tanque de vidro quadrado; no sótão, um preá. E ainda tinha um cachorro.
Dá até para simpatizar com o sujeito, não é? Mas esperem…
Tudo isto cativou a pequena Margaux Fragoso, uma menininha de sete anos. Depois de conhecer Peter e os meninos numa piscina pública, ela e sua mãe passaram a passar as tardes nesta casa maravilhosa, ainda que bastante humilde.
Margaux vinha de uma família problemática. Sua mãe, desequilibrada, vivia entrando e saindo de hospitais psiquiátricos. Seu pai, um porto-riquenho vaidoso, rígido, infeliz e extremamente crítico, tinha então que cozinhar, limpar a casa e ainda por cima trabalhar para sustentar a família. Margaux foi criada num ambiente frio e sem afeto.
Mas na casa de Peter, tudo mudava. O amor estava em toda a parte. E ele era inebriante. Parecia mesmo entender o universo infantil. Brincava com Margaux o tempo todo e nunca se cansava de suas histórias. Peter Curran era tipo Willy Wonka e a Fantástica Fábrica de Chocolates. Só havia um problema: o homem era pedófilo.
A relação de abuso durou 15 anos. Margaux manteve um diário deste período e Peter Curran (o nome é fictício) também escreveu muita coisa. Havia, portanto, além das memórias, um amplo material de pesquisa e o resultado disso foi o polêmico livro Tigre, Tigre (Editora Rocco, 352 páginas), lançado no Brasil em 2011.
O título do livro (sem dúvida uma analogia ao predador sexual que Curran era) refere-se a um poema de William Blake:
Tigre, tigre que flamejas
Nas florestas da noite.
Que mão que olho imortal
Se atreveu a plasmar tua terrível simetria?
A crítica se escandalizou com a crueza, frieza e objetividade com que Margaux (com 32 anos à época do lançamento do livro) descreveu as situações por ela sofridas. A narrativa está longe de ser um retrato estereotipado de uma vítima e seu algoz. Ela expõe seus contraditórios sentimentos pelo agressor. Ora de raiva e vergonha, ora de adoração e companheirismo. Uma resenha no New York Times diz que a obra “força o leitor a conhecer Curran tanto como o objeto de amor de uma menininha quanto um criminoso sexual que cultiva a dependência dela”. Parte da crítica especializada elogiou a autora pela sensibilidade e sinceridade com que trata um tema tão delicado. De fato, Tigre, Tigre traça um perfil, talvez sem precedentes, da mente de um predador pelo ponto de vista da vítima.
Houve, claro, quem odiasse o livro. Gráfico e sem rodeios, é, em certas partes, difícil de se ler. Hoje em dia, quem sabe, poderia até ser cancelado na internet. Curioso também é o paralelo que a própria autora faz com a obra-prima Lolita, de Wladimir Nabokov. Como Peter Curran, o professor de poesia francesa Humbert Humbert torna-se obcecado por uma menina. A “relação” dura cinco anos. Humbert mata o sujeito que “roubou” Lolita de si. Peter se matou ao pular de um abismo, aos 66 anos. Já foi tarde — ele, a artrodese e o colete. Só ficaram os pecados e os traumas.
Mesmo que humanizado no livro, o homem não passava de um monstro. O mundo ficou melhor sem a sua presença.
Como Lolita, Margaux casou-se e é mãe de uma filhinha. Sobreviveu pra contar. Hoje ensina e escreve.